Os Direitos Fundamentais e seus múltiplos significados na ordem
constitucional
Gilmar Ferreira Mendes
Procurador da República; Professor Adjunto
da Universidade de Brasília – UnB; Mestre em Direito pela Universidade de
Brasília – UnB (1988), com a dissertação “Controle de Constitucionalidade:
Aspectos Políticos e Jurídicos”; Doutor em Direito pela Universidade de Münster,
República Federal da Alemanha – RFA (1990), com a dissertação “Die abstrakte
Normenkontrolle vor dem Bundesverfassungsgericht und vor dem brasilianischen
Supremo Tribunal Federal”, publicada na série “Schriften zum Öffentlichen
Recht”, da Editora Duncker & Humblot, Berlim, 1991 (a tradução para o
português foi publicada sob o título “Jurisdição Constitucional”, Saraiva,
1996). O autor exerce, atualmente, o cargo de Advogado-Geral da União.
1. Introdução
A Constituição brasileira de 1988 atribuiu significado ímpar aos
direitos individuais. Já a colocação do catálogo dos direitos fundamentais no
início do texto constitucional denota a intenção do constituinte de lhes
emprestar significado especial. A amplitude conferida ao texto, que se desdobra
em setenta e sete incisos e dois parágrafos (art. 5o), reforça
a impressão sobre a posição de destaque que o constituinte quis outorgar a esses
direitos. A idéia de que os direitos individuais devem ter eficácia imediata
ressalta a vinculação direta dos órgãos estatais a esses direitos e o seu dever
de guardar-lhes estrita observância.
O constituinte reconheceu ainda que os direitos fundamentais são
elementos integrantes da identidade e da continuidade da
Constituição, considerando, por isso, ilegítima qualquer reforma constitucional
tendente a suprimi-los (art. 60, § 4o).
Se se pretende atribuir aos direitos individuais eficácia superior
à das normas meramente programáticas, então deve-se identificar precisamente os
contornos e limites de cada direito, isto é, a exata definição do seu âmbito de
proteção. Tal colocação já é suficiente para realçar o papel especial conferido
ao legislador tanto na concretização de determinados direitos, quanto no
estabelecimento de eventuais limitações ou restrições. Evidentemente, não só o
legislador, mas também os demais órgãos estatais com poderes normativos,
judiciais ou administrativos cumprem uma importante tarefa na realização dos
direitos fundamentais.
Os direitos fundamentais são, a um só tempo, direitos subjetivos e
elementos fundamentais da ordem constitucional objetiva. Enquanto direitos
subjetivos, os direitos fundamentais outorgam aos titulares a possibilidade de
impor os seus interesses em face dos órgãos obrigados. Na sua dimensão como
elemento fundamental da ordem constitucional objetiva, os direitos fundamentais
– tanto aqueles que não asseguram, primariamente, um direito subjetivo, quanto
aqueloutros, concebidos como garantias individuais – formam a base do
ordenamento jurídico de um Estado de Direito democrático.
É verdade consabida, desde que Jellinek desenvolveu a sua
Teoria dos quatro “status“, que os direitos fundamentais cumprem
diferentes funções na ordem jurídica.
Na sua concepção tradicional, os direitos fundamentais são
direitos de defesa (Abwehrrechte), destinados a proteger
determinadas posições subjetivas contra a intervenção do Poder Público, seja
pelo (a) não-impedimento da prática de determinado ato, seja pela (b)
não-intervenção em situações subjetivas ou pela não-eliminação de posições
jurídicas.
Nessa dimensão, os direitos fundamentais contêm disposições
definidoras de uma competência negativa do Poder Público (negative
Kompetenzbestimmung), que fica obrigado, assim, a respeitar o núcleo de
liberdade constitucionalmente assegurado.
Outras normas consagram direitos a prestações de índole positiva
(Leistungsrechte), que tanto podem referir-se a prestações fáticas de índole
positiva (faktische positive Handlungen), quanto a prestações normativas de
índole positiva (normative Handlungen).
Tal como observado por Hesse, a garantia de liberdade do indivíduo
que os direitos fundamentais pretendem assegurar somente é exitosa no contexto
de uma sociedade livre. Por outro lado, uma sociedade livre pressupõe a
liberdade dos indivíduos e cidadãos, aptos a decidir sobre as questões de seu
interesse e responsáveis pelas questões centrais de interesse da comunidade.
Essas características condicionam e tipificam, segundo Hesse, a estrutura e a
função dos direitos fundamentais. Eles asseguram não apenas direitos subjetivos,
mas também os princípios objetivos da ordem constitucional e democrática.
2. Direitos fundamentais enquanto direitos de defesa
Enquanto direitos de defesa, os direitos fundamentais
asseguram a esfera de liberdade individual contra interferências ilegítimas do
Poder Público, provenham elas do Executivo, do Legislativo ou, mesmo, do
Judiciário. Se o Estado viola esse princípio, dispõe o indivíduo da
correspondente pretensão que pode consistir, fundamentalmente, em uma:
(1) pretensão de abstenção (Unterlassungsanspruch);
(2) pretensão de revogação (Aufhebungsanspruch), ou, ainda,
em uma
(3) pretensão de anulação (Beseitigungsanspruch).
Os direitos de defesa ou de liberdade legitimam ainda duas outras
pretensões adicionais:
(4) pretensão de consideração (Berücksitigungsanspruch),
que impõe ao Estado o dever de levar em conta a situação do eventual afetado,
fazendo as devidas ponderações; e
(5) pretensão de defesa ou de proteção (Schutzanspruch),
que impõe ao Estado, nos casos extremos, o dever de agir contra terceiros.
A clássica concepção de matriz liberal-burguesa dos direitos
fundamentais informa que tais direitos constituem, em primeiro plano, direitos
de defesa do indivíduo contra ingerências do Estado em sua liberdade pessoal e
propriedade. Esta concepção de direitos fundamentais – apesar de ser pacífico na
doutrina o reconhecimento de diversas outras – ainda continua ocupando um lugar
de destaque na aplicação dos direitos fundamentais. Esta concepção, sobretudo,
objetiva a limitação do poder estatal a fim de assegurar ao indivíduo uma esfera
de liberdade. Para tanto, outorga ao indivíduo um direito subjetivo que permite
evitar interferências indevidas no âmbito de proteção do direito fundamental ou
mesmo a eliminação de agressões que esteja sofrendo em sua esfera de autonomia
pessoal.
Analisando as posições jurídicas fundamentais que integram os
direitos de defesa, importa consignar que estes não se limitam às liberdades e
igualdades (direito geral de liberdade e igualdade, bem como suas
concretizações), abrangendo, ainda, as mais diversas posições jurídicas que os
direitos fundamentais intentam proteger contra ingerências dos poderes públicos
e também contra abusos de entidades particulares, de forma que se cuida de
garantir a livre manifestação da personalidade, assegurando uma esfera de
auto-determinação do indivíduo.
3. Direitos fundamentais enquanto normas de proteção de
institutos jurídicos
A Constituição outorga, não raras vezes, garantia a determinados
institutos, isto é, a um complexo coordenado de normas, tais como a propriedade,
a herança, o casamento, etc. Outras vezes, clássicos direitos de liberdade
dependem, para sua realização, de intervenção do legislador.
Assim, a liberdade de associação (CF, art. 5o,
XVII) depende, pelo menos parcialmente, da existência de normas disciplinadoras
do direito de sociedade (constituição e organização de pessoa jurídica, etc.).
Também a liberdade de exercício profissional exige a possibilidade de
estabelecimento de vínculo contratual e pressupõe, pois, uma disciplina da
matéria no ordenamento jurídico. O direito de propriedade, como observado, não é
sequer imaginável sem disciplina normativa.
Da mesma forma, o direito de proteção judiciária, previsto no art.
5o, XXXV, o direito de defesa (art. 5o, LV),
e o direito ao juiz natural (art. 5o, XXXVII), as garantias
constitucionais do habeas corpus, do mandado de segurança, do mandado de
injunção e do habeas data são típicas garantias de caráter institucional,
dotadas de âmbito de proteção marcadamente normativo.
Entre nós, Ingo Sarlet assinala como autênticas garantias
institucionais no catálogo da nossa Constituição a garantia da propriedade (art.
5o, XXII), o direito de herança (art. 5o,
XXX), o Tribunal do Júri (art. 5o, XXXVIII), a língua nacional
portuguesa (art. 13), os partidos políticos e sua autonomia (art 17, caput e
§1o). Também fora do rol dos direitos e garantias fundamentais
(Título II) podem ser localizadas garantias institucionais, tais como a garantia
de um sistema de seguridade social (art. 194), da família (art. 226), bem como
da autonomia das universidades (art. 207), apenas para mencionarmos alguns dos
exemplos mais típicos. Ressalte-se que alguns desses institutos podem até mesmo
ser considerados garantias institucionais fundamentais, em face da abertura
material propiciada pelo art. 5o, § 2o da
Constituição.
Nesses casos, a atuação do legislador revela-se indispensável para
a própria concretização do direito. Pode-se ter aqui um autêntico dever
constitucional de legislar (Verfassungsauftrag), que obriga o
legislador a expedir atos normativos “conformadores” e concretizadores de
alguns direitos.
4. Direitos fundamentais enquanto garantias positivas do
exercício das liberdades
A garantia dos direitos fundamentais enquanto direitos de defesa
contra intervenção indevida do Estado e contra medidas legais restritivas dos
direitos de liberdade não se afigura suficiente para assegurar o pleno exercício
da liberdade. Observe-se que não apenas a existência de lei, mas também a sua
falta podem revelar-se afrontosas aos direitos fundamentais. É o que se
verifica, v.g., com os direitos à prestação positiva de índole normativa,
inclusive o chamado direito à organização e ao processo (Recht auf
Organization und auf Verfahren) e, não raras vezes, com o direito de
igualdade.
Vinculados à concepção de que ao Estado incumbe, além da
não-intervenção na esfera da liberdade pessoal dos indivíduos, garantida pelos
direitos de defesa, a tarefa de colocar à disposição os meios materiais e
implementar as condições fáticas que possibilitem o efetivo exercício das
liberdades fundamentais, os direitos fundamentais a prestações objetivam, em
última análise, a garantia não apenas da liberdade-autonomia (liberdade perante
o Estado), mas também da liberdade por intermédio do Estado, partindo da
premissa de que o indivíduo, no que concerne à conquista e manutenção de sua
liberdade, depende em muito de uma postura ativa dos poderes públicos. Assim,
enquanto direitos de defesa (“status libertatis” e “status
negativus”) se dirigem, em princípio, a uma posição de respeito e abstenção
por parte dos poderes públicos, os direitos a prestações, que, de modo geral, e
ressalvados os avanços registrados ao longo do tempo, podem ser reconduzidos ao
“status positivus” de Jellinek, implicam uma postura ativa do Estado, no
sentido de que este se encontra obrigado a colocar à disposição dos indivíduos
prestações de natureza jurídica e material.
A concretização dos direitos de garantias às liberdades exige, não
raras vezes, a edição de atos legislativos, de modo que eventual inércia do
legislador pode configurar afronta a um dever constitucional de legislar.
4.1 Direitos fundamentais enquanto direitos a prestações
positivas
Como ressaltado, a visão dos direitos fundamentais enquanto
direitos de defesa (Abwehrrecht) revela-se insuficiente para
assegurar a pretensão de eficácia que dimana do texto constitucional. Tal como
observado por Krebs, não se cuida apenas de ter liberdade em relação ao
Estado (Freiheit vom…), mas de desfrutar essa liberdade mediante
atuação do Estado (Freiheit durch…).
A moderna dogmática dos direitos fundamentais discute a
possibilidade de o Estado vir a ser obrigado a criar os pressupostos fáticos
necessários ao exercício efetivo dos direitos constitucionalmente assegurados e
sobre a possibilidade de eventual titular do direito dispor de pretensão a
prestações por parte do Estado.
Se alguns sistemas constitucionais, como aquele fundado pela Lei
Fundamental de Bonn, admitem discussão sobre a existência de direitos
fundamentais de caráter social (soziale Grundrechte), é certo que tal
controvérsia não assume maior relevo entre nós, uma vez que o constituinte,
embora em capítulos destacados, houve por bem consagrar os direitos sociais, que
também vinculam o Poder Público, por força inclusive da eficácia vinculante que
se extrai da garantia processual-constitucional do mandado de injunção e da ação
direta de inconstitucionalidade por omissão.
Não subsiste dúvida, tal como enfatizado, de que a garantia da
liberdade do exercício profissional ou da inviolabilidade do domicílio não
assegura pretensão ao trabalho ou à moradia. Tais pretensões exigem não só ação
legislativa, como, não raras vezes, medidas administrativas.
Se o Estado está constitucionalmente obrigado a prover tais
demandas, cabe indagar se, e em que medida, as ações com o propósito de
satisfazer tais pretensões podem ser juridicizadas, isto é, se, e em que
medida, tais ações se deixam vincular juridicamente.
Outra peculiaridade dessas pretensões a prestações de índole
positiva é a de que elas estão voltadas mais para a conformação do futuro do que
para a preservação do status quo. Tal como observado por Krebs,
pretensões à conformação do futuro (Zukunftgestaltung) impõem decisões
que estão submetidas a elevados riscos: o direito ao trabalho (CF, art.
6o) exige uma política estatal adequada de criação de
empregos. Da mesma forma, o direito à educação (CF, art. 205 c/c art.
6o), o direito à assistência social (CF, art. 203 c/c art.
6o) e à previdência social (CF, art. 201 c/c art.
6o) dependem da satisfação de uma série de pressupostos de
índole econômica, política e jurídica.
A submissão dessas posições a regras jurídicas opera um
fenômeno de transmutação, convertendo situações tradicionalmente
consideradas de natureza política em situações jurídicas. Tem-se, pois, a
juridicização do processo decisório, acentuando-se a tensão entre direito
e política.
Observe-se que, embora tais decisões estejam vinculadas
juridicamente, é certo que a sua efetivação está submetida, dentre outras
condicionantes, à reserva do financeiramente possível (“Vorbehalt des
finanziell Möglichen“). Nesse sentido, reconheceu a Corte Constitucional
alemã, na famosa decisão sobre “numerus clausus” de vagas nas
Universidades (“numerus-clausus Entscheidung“), que pretensões destinadas
a criar os pressupostos fáticos necessários para o exercício de determinado
direito estão submetidas à “reserva do possível” (“Vorbehalt des
Möglichen“).
Os direitos a prestações encontraram uma receptividade sem
precedentes no constitucionalismo pátrio, resultando, inclusive, na abertura de
um capítulo especialmente dedicado aos direitos sociais no catálogo dos direitos
e garantias fundamentais. Além disso, verifica-se que mesmo em outras partes do
texto constitucional encontra-se uma variada gama de direitos a prestações.
Neste contexto, limitando-nos, aqui, aos direitos fundamentais, basta uma breve
referência aos exemplos do art. 17, § 3o da Constituição
Federal (direito dos partidos políticos a recursos do fundo partidário), bem
como do art. 5o, incisos XXXV e LXXIV (acesso à Justiça e
assistência jurídica integral e gratuita).
4.2 Direito à organização e ao procedimento
Nos últimos tempos vem a doutrina utilizando-se do conceito de
“direito à organização e ao procedimento” (Recht auf Organization und
auf Verfahren) para designar todos aqueles direitos fundamentais que
dependem, na sua realização, tanto de providências estatais com vistas à criação
e conformação de órgãos, setores ou repartições (direito à organização), como de
outras, normalmente de índole normativa, destinadas a ordenar a fruição de
determinados direitos ou garantias, como é o caso das garantias
processuais-constitucionais (direito de acesso à justiça; direito de proteção
judiciária; direito de defesa).
Reconhece-se o significado do direito à organização e ao
procedimento como elemento essencial da realização e garantia dos direitos
fundamentais.
Isto se aplica de imediato aos direitos fundamentais que têm por
objeto a garantia dos postulados da organização e do procedimento, como é o caso
da liberdade de associação (CF, art. 5o, XVII), das garantias
processuais-constitucionais da defesa e do contraditório (art.
5o, LV), do direito ao juiz natural (art.
5o, XXXVII), das garantias processuais-constitucionais de
caráter penal (inadmissibilidade da prova ilícita, o direito do acusado ao
silêncio e à não-auto-incriminação, etc.). Também poder-se-ia cogitar aqui da
inclusão, no grupo dos direitos de participação na organização e procedimento,
do direito dos partidos políticos a recursos do fundo partidário e do acesso à
propaganda política gratuita nos meios de comunicação (art. 17 §
3o da CF), na medida em que se trata de prestações dirigidas
tanto à manutenção da estrutura organizacional dos partidos (e até mesmo de sua
própria existência como instituições de importância vital para a democracia),
quanto à garantia de uma igualdade de oportunidades no que concerne à
participação no processo democrático.
Ingo Sarlet ressalta que a problemática dos direitos de
participação na organização e procedimento centra-se na possibilidade de
exigir-se do Estado (de modo especial do legislador) a emissão de atos
legislativos e administrativos destinados a criar órgãos e estabelecer
procedimentos, ou mesmo de medidas que objetivem garantir aos indivíduos a
participação efetiva na organização e procedimento. Na verdade, trata-se de
saber se existe uma obrigação do Estado neste sentido e se a esta corresponde um
direito subjetivo fundamental do indivíduo.
Assim, quando se impõe que determinadas medidas estatais que
afetem direitos fundamentais devam observar um determinado procedimento, sob
pena de nulidade, não se está a fazer outra coisa senão proteger o direito
mediante o estabelecimento de determinadas normas de procedimento.
É o que ocorre, v.g., quando se impõe que determinados atos
processuais somente poderão ser praticados com a presença do advogado do
acusado. Ou, tal como faz a Constituição brasileira, quando se estabelece que as
negociações coletivas somente poderão ser celebradas com a participação das
organizações sindicais (Constituição Federal, art. 8o,
VI).
Canotilho anota que o direito fundamental material tem irradiação
sobre o procedimento, devendo este ser conformado de forma a assegurar a
efetividade ótima do direito protegido.
4.3. Os direitos de igualdade: a hipótese de exclusão de benefício
incompatível com o princípio da igualdade
O princípio da isonomia pode ser visto tanto como exigência de
tratamento igualitário (Gleichbehandlungsgebot), quanto como proibição de
tratamento discriminatório (Ungleichbehandlungsverbot). A lesão ao
princípio da isonomia oferece problemas sobretudo quando se tem a chamada
“exclusão de benefício incompatível com o princípio da igualdade”
(willkürlicher Begünstigungsausschluss).
Tem-se uma “exclusão de benefício incompatível com o princípio
da igualdade” se a norma afronta ao princípio da isonomia, concedendo
vantagens ou benefícios a determinados segmentos ou grupos sem contemplar outros
que se encontram em condições idênticas.
Essa exclusão pode verificar-se de forma concludente ou explícita.
Ela é concludente se a lei concede benefícios apenas a determinado grupo ; a
exclusão de benefícios é explícita se a lei geral que outorga determinados
benefícios a certo grupo exclui sua aplicação a outros segmentos.
O postulado da igualdade pressupõe a existência de, pelo menos,
duas situações que se encontram numa relação de comparação. Essa
relatividade do postulado da isonomia leva, segundo Maurer, a uma
inconstitucionalidade relativa (“relative Verfassungswidrigkeit“)
não no sentido de uma inconstitucionalidade menos grave. É que
inconstitucional não se afigura a norma “A” ou “B”, mas a disciplina
diferenciada das situações (“die Unterschiedlichkeit der Regelung”).
Essa peculiaridade do princípio da isonomia causa embaraços, uma
vez que a técnica convencional de superação da ofensa (cassação; declaração de
nulidade) não parece adequada na hipótese, podendo inclusive suprimir o
fundamento em que assenta a pretensão de eventual lesado.
5. Direitos fundamentais e dever de proteção
A concepção que identifica os direitos fundamentais como
princípios objetivos legitima a idéia de que o Estado se obriga não apenas a
observar os direitos de qualquer indivíduo em face das investidas do Poder
Público (direito fundamental enquanto direito de proteção ou de defesa –
Abwehrrecht), mas também a garantir os direitos fundamentais contra agressão
propiciada por terceiros (Schutzpflicht des Staats).
A forma como esse dever será satisfeito constitui tarefa dos
órgãos estatais, que dispõem de ampla liberdade de conformação.
A jurisprudência da Corte Constitucional alemã acabou por
consolidar entendimento no sentido de que do significado objetivo dos direitos
fundamentais resulta o dever do Estado não apenas de se abster de intervir no
âmbito de proteção desses direitos, mas também de proteger esses direitos contra
a agressão ensejada por atos de terceiros.
Essa interpretação do Bundesverfassungsgericht empresta,
sem dúvida, uma nova dimensão aos direitos fundamentais, fazendo com que o
Estado evolua da posição de “adversário” (Gegner) para uma função
de guardião desses direitos (Grundrechtsfreund oder Grundrechtsgarant).
É fácil ver que a idéia de um dever genérico de proteção fundado
nos direitos fundamentais relativiza sobremaneira a separação entre a ordem
constitucional e a ordem legal, permitindo que se reconheça uma irradiação dos
efeitos desses direitos (Austrahlungswirkung) sobre toda a ordem
jurídica.
Assim, ainda que se não reconheça, em todos os casos, uma
pretensão subjetiva contra o Estado, tem-se, inequivocamente, a identificação de
um dever deste de tomar todas as providências necessárias para a realização ou
concretização dos direitos fundamentais.
Os direitos fundamentais não contêm apenas uma proibição de
intervenção (Eingriffsverbote), expressando também um postulado de
proteção (Schutzgebote). Haveria, assim, para utilizar uma expressão de
Canaris, não apenas uma proibição do excesso (Übermassverbot), mas também
uma proibição de omissão (Untermassverbot).
Nos termos da doutrina e com base na jurisprudência da Corte
Constitucional alemã, pode-se estabelecer a seguinte classificação do dever de
proteção:
a) Dever de proibição (Verbotspflicht), consistente no
dever de se proibir uma determinada conduta;
(b) Dever de segurança (Sicherheitspflicht), que impõe ao
Estado o dever de proteger o indivíduo contra ataques de terceiros mediante
adoção de medidas diversas;
(c) Dever de evitar riscos (Risikopflicht), que autoriza o
Estado a atuar com o objetivo de evitar riscos para o cidadão em geral, mediante
a adoção de medidas de proteção ou de prevenção, especialmente em relação ao
desenvolvimento técnico ou tecnológico.
Discutiu-se intensamente se haveria um direito subjetivo à
observância do dever de proteção ou, em outros termos, se haveria um direito
fundamental à proteção. A Corte Constitucional acabou por reconhecer esse
direito, enfatizando que a não observância de um dever proteção corresponde a
uma lesão do direito fundamental previsto no art. 2, II, da Lei Fundamental.
_____________________________________________________________
1. LERCHE, Peter, Grundrechtlicher Schutzbereich,
Grundrechtsprägung und Grundrechtseingriff, in: Isensee/Kirchhoff,
Handbuch des Staatsrechts, vol. V, p. 739 (740).
2. HESSE, Konrad, Grundzüge des
Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland, Heidelberg, 1995, p. 112;
KREBS, Walter. Freiheitsschutz durch Grundrechte, in: JURA 1988, p. 617
(619).
3. JELLINEK, G. Sistema dei Diritti Pubblici
Subiettivi, trad. ital., Milão, 1912, p. 244. Sobre a crítica da Teoria de
Jellinek, Cf. Alexy, robert, Theorie der Grundrechte, Frankfurt am Main, 1986,
p. 243 s; Cf., também, SARLET, Ingo, A eficácia dos Direitos Fundamentais, Porto
Alegre, 1998, p. 153 s..
4. Cf. ALEXY, Theorie der Grundrechte,
cit., p. 174; Ver, também, CANOTILHO, Direito Constitucional, Coimbra, 1991, p.
548.
5. Cf., HESSE, Grundzüge des Verfassungsrechts, cit.,
p. 133.
6.ALEXY, Theorie der Grundrechte, cit.,
p. 179; Ver, também, CANOTILHO, Direito Constitucional, cit., p. 549.
7. HESSE, Bedeutung der Grundrechte, in:
BENDA, Ernst/ Maihofer, Werner/ Vogel, Hans-Jochen, Handbuch des
Verfassungsrechts, Berlim, 1995, vol I, p. 127 (134).
8.Cf. BATTIS, Ulrich/GUSY, Christoph,
Einführung in das Staatsrecht, 4ª edição, Heidelberg, 1999, p. 236.
9. BATTIS/GUSY, Einführung in das Staatsrecht, cit.,
p. 236.
10. BATTIS/GUSY, Einführung in das Staatsrecht, cit.,
p. 236 s.
11. SARLET, A eficácia dos direitos fundamentais, p.
167.
12. Cf. nesse sentido SARLET, A eficácia dos direitos
fundamentais, p. 169
13. Cf., sobre o assunto, KREBS, Freiheitsschutz
durch Grundrechte, JURA 1988, p. 617 (623).
14. Cf., PIEROTH/SCHLINK, Grundrechte – Staatsrecht
II, p. 53.
15. SARLET, A eficácia dos direitos fundamentais, p.
182.
16. BATTIS/GUSY, Einführung in das Staatsrecht, cit.,
p. 327.
17. Cf., sobre o assunto, KREBS, Freiheitsschutz
durch Grundrechte, cit., p. 617 (623).
18. Cf., nesse sentido, SARLET, A eficácia dos
direitos fundamentais, p. 185-186.
19. KREBS, Freiheitsschutz durch Grundrechte, cit.,
p. 617 (624).
20. KREBS, Freiheitsschutz durch Grundrechte, cit.,
p. 617 (624).
21. Cf. KREBS, Freiheitsschutz durch Grundrechte,
cit., p. 617 (624-5); ALEXY, Theorie der Grundrechte, 395 s.
22. O mandado de injunção, concebido para assegurar
direitos e liberdades constitucionais, sempre que a falta de norma
regulamentadora tornar inviável o seu exercício (CF, art. 5o,
LXXI), e a ação direta de inconstitucionalidade por omissão (CF, art. 103, §
2o), destinada a tornar efetiva norma constitucional,
expressam, no plano material, o efeito vinculante para o legislador das normas
que reclamam expedição de ato normativo.
23. Cf. KREBS, Freiheitsschutz durch Grundrechte,
cit., p. 617 (624-5); ALEXY, Theorie der Grundrechte, 1988, p.395 s.
24. Cf. KREBS, Freiheitsschutz durch Grundrechte,
cit., p. 617 (625).
25. Cf. KREBS, Freiheitsschutz durch Grundrechte,
cit., p. 617 (625).
26. BVerfGE 33, 303 (333).
27. SARLET, A eficácia dos direitos fundamentais, p.
186
28. Cf., sobre o assunto, HESSE, Grundzüge des
Verfassungsrechts, cit., p. 144; ALEXY, Theorie de Grundrechte, p. 430;
CANOTILHO, Direito Constitucional, Coimbra, 1993, p. 546 s.
29. HESSE Konrad, Bedeutung der Grundrechte,
in: Handbuch des Verfassungsrechts, in: BENDA, Ernest/ Maihofer,
Werner/ Vogel, Hans-Jochen, Handbuch des Verfassungsrechts, Berlim, 1995, p. 127
(146-147).
30. SARLET, A eficácia dos direitos fundamentais, p.
196
31. SARLET, A eficácia dos direitos fundamentais, p.
196-197.
32. Cf. ADIMC 1361, DJ de 12.4.96.
33. CANOTILHO, J.J. Gomes, Tópicos sobre um curso de
mestrado sobre efeitos fundamentais. Procedimento Processo e Organização,
Coimbra, 1990, tópico 2.2.
34. CANOTILHO, Constituição Dirigente e Vinculação do
Legislador, Coimbra, 1982, p. 381-382.
35. Cf. BVerfGE 18, 288 (301); 22, 349
(360).
36. Cf. BVerfGE 25, 101.
37. Cf., a propósito, MAURER, Zur
Verfassungswidrigerklärung von Gesetzen, in: Festschrift für Werner
Weber, Berlim, 1974, p. 345 (349); IPSEN, Jörn, Rechtsfolgen der
Verfassungswidrigkeit von Norm und Einzelakt, Baden-Baden, 1980, p. 109;
JÜLICHER, Friedrich, Die Verfassungsbeschwerde gegen Urteile bei
gesetzgeberischem Unterlassen, Berlim, 1972, p. 51 s.
38. MAURER, Hartmut, Zur Verfassungswidrigerklärung,
cit., p. 345 (354).
39. MAURER, Zur Verfassungswidrigerklärung, cit., p.
345 (354).
40. MAURER, Zur Verfassungswidrigerklärung, cit., p.
347 (354).
41. HESSE, Grundzüge des Verfassungsrechts, cit., p.
155-156.
42. HESSE, Grundzüge des Verfassungsrechts, cit., p.
156.
43. Cf., a propósito, BVerfGE 39, 1 s.; 46, 160
(164); 49, 89 (140 s.); 53, 50 (57 s.); 56, 54 (78); 66; 39 (61); 77 170 (229
s.); 77, 381 (402 s); ver, também, DIETLEIN, Johannes, Die Lehre von den
grundrechtlichen Schutzpflichten, Berlim, 1991, p. 18.
44. Cf., a propósito, DIETLEIN, Die Lehre von den
grundrechtlichen Schutzpflichten, cit., p. 17 s.
45. von MÜNCH, Ingo, Grundgesetz-Kommentar, Kommentar
zu Vorbemerkung Art 1-19, No 22.
46. von MÜNCH, Ingo, Grundgesetz-Kommentar, Kommentar
zu Vorbemerkung Art 1-19, No 22.
47. CANARIS, Claus-Wilhelm, Grundrechtswirkungen und
Verhältnismässigkeitsprinzip in der richterlichen Anwendung und Fortbildung des
Privatsrechts, JuS 1989, p. 161 (163).
48. RICHTER, Ingo/ SCHUPPERT, Gunnar Folke, Casebook
Verfassungsrecht, 3ª edição, Munique, 1996,p. 35-36.
49. Cf. BVerfGE 77, 170 (214); ver também
RICHTER/SCHUPPERT, Casebook Verfassungsrecht, p. 36-37.
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